terça-feira, 25 de agosto de 2009

Procurando Ladislaw Wypych




No final dos anos 20, o polonês Ladislaw Wypych estava diante de uma difícil decisão. Seu país sofria os rigores da Grande Depressão num grau ainda maior do que o resto do mundo, já que a independência da Polônia era recente e a economia ainda estava longe de ser minimamente estável quando a crise estourou. O desemprego era tão epidêmico que havia programas oficiais estimulando a emigração; somente assim, dizia-se, iria haver empregos para os que ficassem. E os que emigrassem poderiam ser bem sucedidos em outros países, ajudando a Polônia com o envio de recursos e, quem sabe um dia, voltando em definitivo, talvez ricos até.

Sem nenhuma perspectiva em seu próprio país, Ladislaw ponderou bastante e, como tantos outros europeus na primeira metade do Século XX, decidiu emigrar – uma terrível decisão que implicava em abandonar, de uma só vez, tudo que conhecia e amava, incluindo família e amigos, incluindo até a própria língua. Ladislaw veio para o Brasil, sem falar uma palavra de português e carregando pouco mais do que as próprias roupas.

Talvez ele tenha pensado em trabalhar, como primeira opção, na polícia ou como segurança. Veterano da Primeira Guerra Mundial e da Guerra Polaco-Soviética, tinha muita experiência no assunto – e tinha, também, várias cicatrizes no peito para provar. A única explicação para que ele continuasse vivo é que a metralhadora que o atingira devia estar além do limite de alcance útil, porque era impossível que alguém com tantos “furos” no peito pudesse ter sobrevivido. Mas as balas (ou estilhaços, ninguém sabe ao certo) haviam penetrado, as cicatrizes estavam ali para provar e ainda assim ele tinha sobrevivido. Aliás, essas balas alemãs que o perfuraram possivelmente tiveram, para ele, uma dor adicional à de seus compatriotas, já que seu pai era polonês, mas sua mãe era alemã.

De qualquer maneira, esse polonês corajoso veio para o Brasil e, aqui, como é tão comum nesse incrível caldeirão planetário chamado São Paulo, se apaixonou por uma italiana – uma baixinha briguenta que soltava impropérios no incompreensível dialeto da Calábria toda vez que se irritava com ele (o que, dizem, ocorria com bastante freqüência).

Os dois se casaram, tiveram uma filha e, conforme a década de 30 ia se aproximando do fim, a recessão mundial parecia definitivamente vencida; o mundo progredia, a economia do Brasil também e era difícil imaginar que algo pudesse ameaçar a família que Ladislaw criara tão longe de sua terra natal.

Porém, em 1º de setembro de 1939, tropas nazistas invadem a Polônia, dando início à Segunda Guerra Mundial. Poucos dias mais tarde, os soviéticos covardemente atacam pelo leste, obrigando o desestruturado exército polonês (montado às pressas depois da independência) a ter de enfrentar, ao mesmo tempo, as duas maiores potências militares da época.

Ladislaw se desespera. Os velhos inimigos – alemães e russos – estão, mais uma vez, tentando jogar a Polônia de volta à escravidão, da qual ela saíra tão recentemente e a custa de tantos sacrifícios. Esses velhos inimigos, porém, estão mais perigosos do que nunca: agora compartilham credos doentios de fanatismo coletivista (o nacional-socialismo e o socialismo bolchevique, tão diferentes nos detalhes e tão idênticos na essência).

Era de conhecimento geral que a resistência do exército polonês não faria mais do que adiar o avanço dos nazistas e comunistas. Essa resistência, que reconhecidamente foi além de todos os limites do heroísmo, deteve os invasores por mais tempo e a um custo muito maior do que qualquer um poderia sonhar – mas o fato é que era uma guerra perdida antes mesmo de começar. As poucas armas dos poloneses eram sobras da Primeira Guerra; enquanto que os nazistas, além de uma superioridade numérica esmagadora, tinham armas, táticas e equipamentos que estavam décadas à frente de todo o resto do mundo. Já os soviéticos dispunham, só na chamada “frente polonesa”, de um exército pouco menor do que toda a população da Polônia.

Com família, nacionalidade e patrimônio brasileiros, com uma vida toda estruturada no Brasil, não faria o menor sentido pretender voltar à Polônia – algo que, aliás, nunca lhe fora pedido por ninguém; além disso, àquela altura a guerra já estava perdida. Ninguém jamais saberá quão difícil foi a escolha de qual caminho seguir, mas o fato é que o velho soldado decide abandonar tudo, inclusive a filha de dois anos, e volta à Europa para proteger os que haviam ficado.

Algumas semanas depois, sua desesperada esposa recebe uma carta; nela, há uma foto de Ladislaw, vestido (“fantasiado”, diria ela mais tarde) de cozinheiro. “Não se preocupe”, dizia ele, “minha atividade aqui é de cozinheiro, e por isso fico longe da linha de fogo”. Ela não precisava lembrar das cicatrizes de bala para saber qual exatamente era o tipo de atividade que ele teria no front; o fato de que ele nunca soubera nem fritar um ovo era suficiente. Além, é claro, de que várias outras esposas de soldados, vizinhas dela no Cambuci, também haviam recebido fotos quase idênticas, com os respectivos maridos com as mesmas roupas, na mesma posição ridícula (ao lado de uma panela enorme, e com uma colher de pau empinada) e com a mesmíssima explicação sobre a segurança proporcionada pelo encargo de “chef”. “Mentiroso maledeto!”, teria dito ela, acompanhada pelas demais.

Essa foi a penúltima notícia que ela teve do marido. A última foi uma carta recebida meses depois, escrita em polonês, informando que ele tinha morrido em combate; ela, claro, sabia do conteúdo antes mesmo que uma das vizinhas viesse traduzir. Ladislaw Wypych tinha morrido no campo de batalha, lutando contra os invasores nazistas.

Em maio de 2009, visitei a Polônia; um dos objetivos da viagem era tentar descobrir qualquer informação adicional sobre as circunstâncias da morte de Ladislaw Wypych, meu avô. Sua filha de dois anos era minha mãe. Não tive sucesso na empreitada, mas vou continuar tentando. Aliás, é um ótimo motivo para retornar a esse país maravilhoso, e cada vez mais belo e desenvolvido em que a Polônia, finalmente livre de nazistas e comunistas, está se tornando.