quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Doutor é quem fez doutorado (ou “às vezes a vaidade é maior do que a própria lei”)



Do mesmo modo que existem as “lendas urbanas”, existem também no mundo do Direito as “lendas jurídicas” – histórias claramente absurdas mas que, por motivos que a razão ignora, vão se perpetuando no tempo e às vezes até adquirindo ares de verdade incontestável. Uma, em particular, é especialmente resistente, talvez por conta de costume arraigado (mas nem por isso menos errado), talvez por causa da invencível vaidade humana: a de que bacharéis em Direito “mereceriam” (vaidade, sempre a vaidade...) ser chamados de “doutores”.

As origens da lenda variam conforme o “contador do causo”; às vezes o motivo da pérola seria um “decreto real de Portugal” (hein?), noutras um “alvará” (ai, socorro...) que “determinaria” que “bacharel também é doutor” (socorro ao quadrado...). A versão mais famosa, porém, é a de que D. Pedro I, na mesma lei que determinou a criação dos cursos jurídicos, “inventou” que o bacharel teria o “direito” ao título de doutor.

A história, claro, é completamente falsa. Para não alongar muito, vamos logo à letra do texto da Lei de 11 de Agosto de 1827, que é a norma que criou os cursos de Direito no Brasil (em Olinda e no Largo de São Francisco – esse é o motivo, a propósito, de por que 11 de agosto é o dia do estudante e também o dia do advogado):

Art. 9.º - Os que freqüentarem os cinco annos de qualquer dos Cursos, com approvação, conseguirão o gráo de Bachareis formados. Haverá tambem o grào de Doutor, que será conferido áquelles que se habilitarem com os requisitos que se especificarem nos Estatutos, que devem formar-se, e sò os que o obtiverem, poderão ser escolhidos para Lentes.

Ou seja, a lei dizia exatamente O CONTRÁRIO do que afirma a lenda: quem se forma no curso de Direito tem grau de “bacharel”, enquanto que o título de doutor seria reservado àquele que obtivesse tal grau, segundo as regras que seriam estabelecidas para isso pelos estatutos das faculdades recém-criadas – ou seja, o obtivessem no curso de doutorado. E só quem tivesse o grau de doutor poderia ser escolhido como “lente” (o que hoje seria o “livre-docente”).

Uma variação ainda mais absurda da lenda dizia que a “habilitação de doutor” não seria o curso de doutorado, mas sim o ingresso na OAB (ó, resistente vaidade...). Quem inventou essa bobagem não se deu ao trabalho de pesquisar alguns segundos na internet e descobrir que a OAB só foi criada no anos 1930, ou seja, mais de cem anos depois da promulgação da lei...

É óbvio que essa lei não está mais em vigor, mas o importante é notar que NUNCA existiu a norma que a lenda propaga. Em tempos outros, talvez fosse justificável a dúvida, dada a dificuldade de se saber se uma lei antiga existiu mesmo ou não. Nos tempos atuais, em que tudo está ao alcance e ao tempo de um clique, é difícil entender como uma tolice dessas proporções continua fazendo adeptos.

Não acredita? Veja a íntegra da lei aqui:

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/Rev_63/Lei_1827.htm

“Mas e o costume?”, dirão alguns. Ora, também há um “costume” de se dizer “menas” e é errado na mesma proporção.

Que leigos cometam esse erro é compreensível; não houve ninguém a ensiná-los. Temos nós, que tivemos a oportunidade de estudar, o dever de esclarecer a quem assim desejar. Pior (muito pior) são professores de direito propagarem o erro – aí é imperdoável.

Enfim, advogado não é doutor. Juiz não é doutor (a propósito, aproveite e pare de chamá-lo assim no endereçamento das petições!). Médicos e quaisquer outros profissionais também só serão doutores se e somente se cursarem uma pós-graduação stricto sensu chamada “doutorado” (ó, incrível descoberta!).

Uma questão final: “doutor” é título acadêmico. “Doutor” não é “pronome de respeito”, nem muito menos título profissional. Então, mesmo que tenha doutorado, só faz sentido chamar alguém de doutor no ambiente acadêmico, não no profissional. Se um advogado tiver título de mestre, o juiz deve chamá-lo de “mestre” na audiência? Ou o promotor ao juiz, ou este ao delegado? Claro que não. Então, é exatamente da mesma forma para o título de doutor. Ou, mais claro ainda: se fora do ambiente profissional o juiz tiver o hobbie de colecionar selos, você vai incluir isso no endereçamento da petição?...

Então, de uma vez por todas, diga não às lendas! :-)