sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Lula, seus discursos e sua candidata

Pouco antes do segundo turno, fui perguntado num desses fóruns da vida se eu achava que a provável vitória da candidata Dilma seria decorrência da habilidade verbal de Lula. Que cada voto dela era devido a ele ninguém questionava; mas qual seria o peso, nessa relação, de seus famosos discursos?

Muito pequena, a meu ver. Penso que a popularidade de Lula tem pouco a ver com sua capacidade de comunicação. O ponto essencial, e que não tem nenhuma relação com comunicação ou com “carisma”, é que houve um enorme aumento de renda nos últimos 15 anos por decorrência do fim da inflação. É isso que faz Lula ser popular e é isso que elegeu Dilma; os discursos em que ele fala palavrões ou aparece bêbado têm pouca importância para quem, pela primeira vez, consegue comprar comida suficiente para o mês inteiro. É dessas pessoas que o “imposto inflacionário” sugava tudo e são essas pessoas, incluindo as que não recebem Bolsa Família, que lhe dão são sua aprovação recorde.

Falar de incontáveis escândalos comprovados de corrupção não causa efeito nessa imensidão de remediados. Eles não sabem ou não se importam que Lula, no bom e no mau, manteve quase tudo exatamente idêntico ao que havia no governo anterior – e seu grande mérito foi fazer isso na economia, para desespero de seus colegas de partido e para sorte do país e dessa massa de ex-esfomeados. Não adianta dizer que o fim da inflação foi obra do governo anterior, que Lula e seu partido atacaram o Plano Real e votaram contra ele em todas as votações Congresso, nem que Lula (esperto como sempre) colocou como presidente do Banco Central (o “dono do cofre”) um membro histórico do PSDB (ciente que ninguém em seu próprio partido era qualificado). Isso tudo importa pouco para quem passava fome e hoje consegue comprar frango todo domingo.

Lula, como comunicador, é na verdade bastante sofrível, mesmo quando fala para o povão. Se não fosse o frango dominical, suas metáforas de futebol e seus palavrões teriam tão pouco efeito quanto suas demais bravatas tiveram nas três vezes em que foi derrotado – o povo, mesmo com pouca educação formal, não é burro como o PT costuma supor. Ninguém, nem mesmo os analfabetos do mais profundo sertão, têm dúvidas das fragilidades intelectuais e de caráter de Lula; seus discursos deixam as duas coisas bem claras. Mas, lá nos confins da caatinga, esse analfabeto e ex-faminto pragmaticamente apóia quem lhe parece responsável pela melhoria em sua vida – e ninguém pode recriminá-lo por isso.

Aliás, a própria oposição tem grande responsabilidade nesse processo de permitir que o atual governo se aposse do Real e da estabilidade econômica que tanto condenavam.

Lula, mostrando a sagacidade política que, essa sim, é seu grande trunfo, também não mudou absolutamente nada nos pontos que precisavam desesperadamente de mudança. Ele sempre soube, e sempre declarou em seus discursos como candidato, que só com o peso político de um presidente recém-eleito é que o Congresso alteraria alguma coisa nos sistemas previdenciário, tributário e político (a reforma política, em particular, era prometida por Lula “logo nos seis primeiros meses” de seu primeiro mandato). Porém, espertamente, ele ficou bem longe desses vespeiros durante 8 anos, gastando-os em viagens burlescas e colecionando gafes internacionais. Ele sabe que, se tivesse enfrentado esses problemas, os resultados de curto prazo certamente gerariam um desgaste político muito grande. Essa esperta inércia quanto aos grandes problemas é o outro segredo muito especial de sua popularidade tão alta – e o país que pague o preço no longo prazo.

Na educação, que é péssima desde sempre e que deveria ser a prioridade máxima do país inteiro, ele cuidadosa e preguiçosamente fez o que faz melhor: nada, rigorosamente nada. Tudo na estrutura educacional, da forma de financiamento à regulamentação dos currículos, da divisão de competências entre os entes estatais à alocação de recursos, tudo permanece rigorosamente intocado. De novo, no longo prazo se pagará o preço dessa popularidade viçosa.

Com a sorte de não enfrentar crises internacionais, a única que Lula viu encontrou a economia brasileira tão sólida que aqui passou como “marolinha” – e é exatamente essa a “herança maldita” que ele desbragadamente copia há 8 anos, mesmo a amaldiçoando em público.

Mas a esperteza final de Lula, a esperteza maior, foi como se perpetuar no poder. Depois de perceber que proposta de alterar a Constituição para conseguir um terceiro mandato teria um custo político alto demais, ele descobriu um caminho diferente: criou uma candidata que, sem histórico político nenhum, sem ter participado de nenhuma eleição, sem nunca ter recebido um único voto em toda a sua vida, seria em tudo e por tudo completamente dependente dele – e Lula, o político mais esperto que já se viu, encontrou um meio de continuar no poder sem precisar se eleger.

Claro, há um perigo escondido aí – e o homem do povo talvez pudesse explicar a Lula que, “como diz o dito popular”, quem tenta ser esperto demais acaba sendo engolido pela própria esperteza. Ninguém garante que a nova dona da caneta não tome gosto pela coisa e resolva libertar-se de seu patrono. Ou ainda: Lula se orgulha de nunca ter lido nenhum livro, mas os de ficção científica e os de religião talvez lhe ensinassem aquele princípio difícil de fugir de que “a criatura sempre se volta contra o criador”. Por ora, porém, isso ainda é conjectura...

Enfim, a força de Lula não está em seus discursos ébrios e mal educados. Na verdade, o que ele diz tem muito pouca importância. O que ele faz, porém, vem definindo os rumos do país inteiro, num nível mais profundo do que se vê a primeira vista. E, pelo jeito, por um prazo muito mais longo do que se poderia supor.

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