Pacto Sagrado
Humanos e cães têm, juntos, uma história longa
e fascinante. Não se sabe ao certo o tempo do início dessa amizade; alguns
estudos falam de 18.000 anos atrás, outros de 33 a 35.000 anos, mas há até pesquisas
baseadas em fósseis europeus que afirmam ser de incríveis 135.000 anos (nosso
desconhecimento é tão grande na área que não se sabe sequer se esse início foi mesmo
na Europa, ou se foi na Ásia). O que se tem certeza é que o cão foi o primeiro
animal a ser domesticado, muitíssimo antes de qualquer outro – muito antes,
até, do que o início da própria agricultura, considerado como o princípio da
civilização, datado em alguma coisa entre 10 e 12 mil anos atrás.
Apesar disso, o “como” essa amizade nasceu é
algo de que os pesquisadores têm uma noção razoavelmente clara. Os humanos,
agrupados em clãs, sobreviviam da coleta e, especialmente, da caça. Apesar de
não serem muito fortes ou muito rápidos comparados a outros animais, nem terem
garras ou mandíbulas muito poderosas, esses caçadores primitivos tinham alguns
trunfos que os tornavam particularmente bons. Sua pele era capaz de suar – o
que significava que, graças à regulação da temperatura, podiam correr
distâncias incrivelmente longas (os cães, por exemplo, só têm glândulas
sudoríparas no ânus e na palmilha das patinhas. Sabia?). As presas, ainda que bem
mais velozes, no geral não eram capazes de manter suas grandes velocidades por
distâncias muito longas – e então nossos ancestrais maratonistas as abatiam, às
vezes depois de horas de disputa, em estado de exaustão. Extremamente
sociáveis, os humanos caçavam em equipe coesas e bem coordenadas; com
inteligência sem paralelo, esses grupos planejavam emboscadas, se valiam do
terreno (usando penhascos e estreitos) e criavam toda sorte de estratégia para
maximizar o ganho (sim, “economia” existe desde sempre, milênios antes de se
tornar uma disciplina formal). A falta de garras e mandíbulas grandes era também
suprida com inteligência e engenho, que permitiam produzir ferramentas
incríveis (tacapes, facas – de pedra, não de metal, óbvio – e lanças foram as
primeiras, provavelmente nessa ordem).
Os lobos eram adversários dos humanos e, mais
do que isso, competidores, disputando as mesmas presas. É certo que, exatamente
por serem bons caçadores, os humanos produziam em seus acampamentos grandes
quantidades de restos de caça; isso atraía predadores e, por certo também, o
lobo dentre eles.
Aqui, em algum momento, algo mágico acontece.
Os lobos, eternos inimigos dos humanos, aprendem
(sim, essa é a palavra) que “perto dos humanos há comida”. Isso faz com que alguns lobos comecem a ir com mais
freqüência aos acampamentos humanos... Mas somente lobos muito especiais.
Não se sabe ao certo o que ocorre nesse ponto.
O mais provável é que os lobos mais medrosos simplesmente não façam isso, e que
os lobos mais agressivos façam, mas acabem atacando os humanos (e, nisso, toda
a suposta vantagem de “comida fácil” acaba aqui). Somente um tipo muito
especial de lobo se aproxima, e volta outras vezes, e não ataca e não é
atacado, e finalmente se torna um “freqüentador” da lixeira do acampamento
humano: o lobo que, a um só tempo, é
corajoso, mas é menos agressivo.
Esse lobo tão especial, com essas
características de “corajoso mas menos agressivo”, é o avô de todos os cães que
existem sobre a Terra.
E os cães herdaram essas características tão
especiais desse avô.
Em algum momento, os humanos perceberam que
aquele lobo em particular não iria atacar ninguém, e param de atirar pedras nele.
Em algum momento, alguma criança do grupo acaba por atirar, ao invés de pedras,
um pedaço de carne ou de osso para ele. Em alguma noite de especial cansaço,
aquele lobo resolve dormir por ali mesmo, perto da lixeira, e nenhum humano o
incomoda.
Em algum momento, algum dos humanos percebe que
faro e audição do lobo são infinitamente melhores do que os dele próprio, e que
o lobo tem o sono muitíssimo mais leve (provavelmente por ter evoluído em campo
aberto e desprotegido, e não em árvores como nossos ancestrais pré-humanos); e
que, por isso, ele é muito melhor do que nós para detectar a presença de
predadores ou de humanos inimigos se aproximando.
Em algum momento, esse lobo está dormindo junto dos humanos, e não mais na lixeira.
Em algum momento (gerações, séculos, milênios,
ninguém sabe), humanos e cães estão não só dormindo juntos à noite, mas também caçando
juntos durante o dia, combinando as incríveis vantagens de cada espécie, que se
complementam com tanta perfeição que parecem nascidas uma para a outra.
O lobo continuou a ser nosso inimigo ao longo
dos milênios, mas aquele lobo especial se tornou o melhor amigo que jamais
tivemos. Aquele lobo deixou de ser lobo e se tornou cão.
A mudança foi incrivelmente profunda. A própria
genética do animal foi alterada; morfologia, alimentação, fisiologia, comportamento,
praticamente tudo se alterou no cão para se adaptar aos seus amigos humanos.
Vários estudos afirmam que o nosso sucesso como
espécie jamais teria sido tão grande se não fosse a ajuda incomparável dos
cães. Nós transformamos os cães, mas eles foram parte fundamental do processo
que nos transformou no que somos hoje.
Essas dezenas de milhares de anos de amizade
profunda deixaram suas marcas. Análises de tomografia computadorizada provaram
que os cães têm pelos donos o mesmo “tipo” de afeto que crianças têm pelos
pais: quando vêem fotos ou sentem seu cheiro, são exatamente as mesmas áreas do
cérebro que são ativadas num e noutro. Com nenhum outro animal “de estimação”
ocorre isso. Sim, é como você já sabia: o cão vê os donos como seus “pais”!
Chimpanzés são muito mais inteligentes do que
cães e têm incríveis 98% de seu DNA idêntico ao nosso. Ainda assim, testes comprovam que os cães entendem gestos,
expressões faciais e até sentimentos humanos infinitamente melhor do que os
chimpanzés.
Existe um estudo polêmico sobre cães que “sabem” o
momento em que seus donos, a vários quilômetros de distância, estão saindo do
trabalho e começando a volta para casa. As filmagens são realmente incríveis
(procure no Youtube por Sheldrake, é emocionante). Ninguém sabe ainda se essa
“telepatia” é real, muito menos como funciona, mas quem já teve um cão provavelmente
concorda com a hipótese.
Há relatos tocantes de cães que, na Idade
Média, abandonavam suas casas para correr ao encontro dos donos no meio do
floresta, segundos antes de estes serem atacados por... Lobos. Sacrificando a
própria vida, esses cães incríveis eram estraçalhados ao enfrentar, sozinhos,
matilhas inteiras para que seus donos pudessem fugir em segurança. Seria o
cheiro dos lobos? Algum ruído estranho, a vários quilômetros, que só o cão
percebera? Como esse amigo fantástico “sabia” o que estava por acontecer com
seu humano?...
Nós moldamos esse amigo adorável à nossa
vontade. O fizemos carinhoso, meigo, carente até. O fizemos pequeno para caber
em espaços confinados e até em bolsas, grande para intimidar invasores; em
formato de salsicha para caçar em túneis, em formato de "galgo" para correr mais do que coelhos e abatê-los; com mordida suave para não estragar a
caça recém-abatida, com mordida destruidora para ser nosso guarda-costas; com
pernas curtas para caçar ratos em celeiros, com pernas longas para caçar em
campo aberto; com focinho longo e olfato aprimorado para encontrar a caça, com
focinho curto e mandíbula poderosa para nos proteger.
Nossa “moldagem” do cão foi tão profunda que,
veja-se que exemplo curioso, cães pastores nunca atacam rebanhos, de nenhum
tipo, mesmo que estejam famintos (e rebanhos são presa natural dos lobos). Mais
incrível ainda, os cães pastores ficam extremamente nervosos apenas com o
simples cheiro de um lobo. Sim, a amizade é tão profunda que o cão incorporou
em seu DNA que deve proteger nossos rebanhos, ao invés de atacá-los; e, mais
ainda, incorporou que ele é inimigo de seu próprio ancestral.
É ESSE o nível de amor e de “moldagem” que
construímos ao longo dos milênios com esse nosso amigo de quatro patas.
Nós moldamos os cães ao nosso desejo e à nossa
necessidade. E eles aceitaram tudo, inclusive essa enorme mudança em sua
própria genética.
Até isso eles fizeram por nós.
O cão, no entanto, pagou um preço terrível por
essa entrega sem limite aos seus amigos humanos.
Ele perdeu a capacidade de sobreviver sozinho.
Para se amoldar à nossa conveniência, o cão
perdeu praticamente tudo que o lobo tem para sobreviver na natureza.
É nisso que eu penso toda vez que vejo um cão
abandonado. Nós o transformamos no que queríamos, fazendo com que, no processo,
ele dependesse completamente de nós... E então nós o abandonamos, no frio e na
sujeira, para que ele “se vire sozinho”. É esse o nível de traição que
praticamos cada vez que abandonamos um desses nossos amigos.
É uma amizade de dezenas, talvez centenas de
milhares de anos, que estamos desprezando. É um pacto sagrado que nós, como
espécie, estamos vergonhosamente quebrando.
Pense nisso da próxima vez que vir um “cão de
rua”... Lembre-se de que ele não “é” de rua, ele ESTÁ na rua porque eu, você,
todos nós fizemos isso com ele. Nós violamos o pacto sagrado, traímos sua
confiança e o deixamos sozinho.
Pense nisso.
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