domingo, 5 de julho de 2009

Casa e Restaurante


Esse é um daqueles “temas sem fim” e, talvez até por isso mesmo, seja tão divertido: comida caseira ou de restaurante famoso? Comida simples ou “gourmet”? Qual é o melhor macarrão, o da avó ou do “chef” estrelado?

Um dos motivos que fazem dessa uma “discussão sem fim” é que não há parâmetros muito claros: o que é delicioso para um pode ser péssimo para outro, e é só comparar as comidas de países ou regiões diferentes para ver o quanto há de verdade aí. Exatamente por isso é que se costuma dizer que a “comida da avó” está num patamar fora de qualquer comparação justa; ali não se analisa a comida, mas todas as “memórias afetivas” (ah, como os psicólogos gostam dessa expressão!) que vêm junto com ela.

Então, hoje, convido você, leitor, a colocar junto comigo um pouco de lenha na fogueira, ou talvez até entornar esse caldo (curso “Faça sua Metáfora Gastronômica”, lição 46...)... E se a questão fosse levada, exclusivamente, para a cozinha “sofisticada”, esquecendo um pouco a cozinha “caseira”? Será que, sem nenhuma “memória afetiva” envolvida, um cozinheiro amador teria condições de competir com um profissional?

De antemão já digo: acho que jamais vai haver uma resposta definitiva porque, como eu disse, não existe um metro para definir “quão boa” é uma refeição. Mas quero apimentar a coisa (lição 73!!...) e apontar algumas aspectos para se pensar.

O profissional, claro, dispõe de algumas vantagens bem óbvias. Ele tem acesso a cursos com que o amador apenas sonha. Por força das circunstâncias, o amador talvez até freqüente a mesma escola em que o profissional se formou, mas vai fazer nela um curso de duas vezes por semana, durante um mês – enquanto o profissional vai investir tempo, dinheiro e esforço para cursar dois ou mais anos nessa escola, 20 horas por semana (às vezes até 40 ou mais, se ela for vinculada a um restaurante, como é comum atualmente).

O profissional também tem acesso, até em função desses cursos, a técnicas normalmente muito mais elaboradas do que o amador dispõe. Isso sem falar nos equipamentos, às vezes caríssimos (grandes fornos elétricos ou a lenha, só para começar) que cozinhas profissionais podem ter. Por fim, o acesso aos melhores ingredientes, que muitas vezes pode ser uma informação impenetrável para amador, constitui obrigação para o profissional.

Isso tudo não quer dizer, porém, que a comida do profissional vai ficar, necessariamente, melhor do que o jantar especial feito pelo amador. Quer ver quantas vantagens o amador tem?

Especificidade. O amador vai fazer um jantar com aqueles 2 ou 3 pratos, e nada além. Todo seu tempo, esforço e cuidados vão ser dedicados a eles. O restaurante precisa ter um cardápio inteiro ao dispor do cliente, o que nem sempre se “corrige” com o fato de haver uma equipe maior trabalhando. Isso está também diretamente ligado com o fator tempo...

Tempo. O amador tem o sábado inteiro para se preocupar com o jantar que vai fazer. Normalmente até mais do que isso, porque na sexta à noite (ou antes, se necessário) ele já vai ter comprado os principais ingredientes (uma carne que passe a noite inteira marinando, por exemplo). Os profissionais só vão ter o dia inteiro nos restaurantes que não servem almoço, o que é muito raro de acontecer (e quando acontece, está embutido no preço do jantar. Não se iluda!). E, mesmo que tenham o dia inteiro, lembre-se! Eles vão dividir esse tempo com um enorme cardápio, com dezenas de entradas, dezenas de pratos principais, dezenas de sobremesas e – putz! Esquecemos de deixar a carne marinando durante a noite! Coloca agora mesmo, ninguém vai notar a diferença...

Personalização. O amador cozinha para os amigos e para a namorada. Ou para a família, nos casos “amador-mãe” e “amador-avó” (mas mãe a avó também são profissionais, ou não são? “Prendas domésticas” não inclui cozinha?) Ele sabe quem não gosta de alho, quem não come peixe de jeito nenhum, quem prefere o tomate em cubos ao invés de rodelas, quem não gosta de pimenta. Já o sujeito que quiser ficar dando palpite sobre como deve vir sua comida num restaurante corre o sério risco de recebê-la com algum “tempero especial” não muito higiênico – pelo menos é o que dizem as “lendas” a respeito...

Segurança. Por falar em coisas pouco higiênicas, nada passa tanta segurança quanto ver quem preparou sua comida comendo dela também...

Ingredientes. O amador nem sempre vai conhecer “o melhor” fornecedor de algum produto específico, mas às vezes isso não importa tanto. O fornecedor primário para quase tudo é o CEAGESP, então o que ele precisa é ter boas informações e um bom relacionamento com “aquele” revendedor que o atende. Na dúvida, o Mercado da Cantareira e os outros mercados municipais costumam ter os melhores produtos, por isso mesmo um pouco mais caros (se você está preocupado só com preço baixo, já começou errado seu “jantar especial”). Às vezes até os grandes mercados podem ser bons fornecedores quando se entende daquilo que se quer (e se conhece o peixeiro ou o açougueiro dali também, claro).

Só para ilustrar, nunca me esqueço do peixeiro que me atendia num grande supermercado (é, eu também não tenho paciência de ir ao Mercadão todas as vezes...): “Não, doutor, o senhor não quer o salmão... Nem adianta insistir, porque eu sei que, hoje, o senhor não quer o salmão! Hoje o senhor quer o atum!... Este atum aqui!...”

Pois é, aí ocorre o seguinte: o amador vai levar o atum pelo motivo singelo de que o atum está melhor. O “chef” é obrigado a levar o salmão porque seu cardápio inclui um prato com salmão...

Limitação de preço. E por falar em ingredientes, conheci uma vez um “chef” cuja maior reclamação era ter sempre uma voz no seu ombro repetindo “não use isso, é caro demais! Não coloque tanto daquilo!” O amador, se tem um mínimo de apreço pelo que pretende chamar de “seu jantar especial”, quer simplesmente fazer o melhor possível, sem tanta preocupação com preço. Ele não depende do lucro que o prato vai gerar...

Especialização. O amador faz o que melhor sabe, não o que o dono do restaurante mandou. Exatamente por causa disso, sua técnica pode até não ser a mais precisa, mas ela foi aperfeiçoada por anos (às vezes décadas) de aprimoramento daquele prato especial. Aqui, porém, cabe uma ressalva: na culinária, do mesmo jeito que no Direito, é comum se confundir “experiência” com “repetição”... Nem sempre o que foi feito durante vinte anos foi “aprimorado” por vinte anos; às vezes, o que o sujeito tem é um ano de experiência e 19 de repetição...

Isenção contra modismos. Tem tudo a ver com o anterior: o amador faz o que sabe e o que gosta, não o que a moda manda. Sim, moda! Haja “petit gateau” em todos os restaurantes, de todos os estilos (atualmente até restarante japonês tem, como sobremeza principal, o inevitável “petit gateau”)!... Haja purê de mandioquinha só pra dizer que o restaurante é “descolado” e “incorpora a culinária nacional”!... Aliás, caberia até mais uma vantagem nesse mesmo aspecto: a isenção contra rótulos. Só para exemplificar: o coitado do “chef” que cair num restaurante dito “contemporâneo” vai ser obrigado a fazer “combinações criativas” de “culinárias variadas”, como sushi de presunto Parma, sorvete de salsicha, sopa de farofa de mandioca, estrogonofe de anti-matéria e por aí vai. O amador, ao contrário, só dá risada disso tudo.

Comecei o texto perguntando se o amador podia competir com o profissional, mas não pretendo responder; vou deixar você decidir se tem um amigo que faz algum prato melhor do que o do “restaurante badalado”. No fundo, seu amigo tem uma outra vantagem com a qual é mais difícil o “chef” competir (e agora, de novo, vou sair do campo estritamente gastronômico). O ponto central é que sempre vai ser uma grande diversão “comer fora”, mas há algo de muito profundo na experiência de preparar e degustar uma boa refeição com quem a gente gosta, e isso definitivamente vai além da mera diversão ou do simples paladar. Talvez a explicação esteja em algo arraigado em nosso passado mais profundo, quando os primeiros seres humanos perceberam que precisavam partilhar comida para sobreviver – e o partilhar comida se tornou o ritual mais importante que jamais tivemos. Há algo de primitivo e, ao mesmo tempo, de sofisticadamente reconfortante na comida preparada com calma e cuidado pelo nosso próprio clã, no calor de nossa própria caverna, para ser apreciada sem pressa e sem pretensão.

Não há “tournedo rossini” que possa competir com isso.

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