quarta-feira, 1 de julho de 2009

Por que a Justiça é tão lerda? - Parte 1

Publicado por Braghittoni Ives em 10 Fev 2009 sob: Direito (editar)


De tudo que diz respeito a Direito no Brasil, esse é provavelmente o ponto mais discutido – e talvez, apesar disso, o que mais se desconheça. Que a Justiça brasileira é lenta demais todos sabem, mas os motivos de tanta demora parecem ser misteriosos mesmo para quem nela trabalha. Vou tentar, então, colocar um pouco de luz sobre esse assunto em poucas linhas, ainda que haja assunto para teses inteiras (para quem é da área e deseja se aprofundar sobre o tema, há um livro brilhante e indispensável que deve ser lido antes de qualquer coisa: O Tempo e o Processo, TUCCI, José Rogério Cruz e. São Paulo, Ed. RT, 1997).

O primeiro ponto a ser entendido é que há vários fatores diferentes quanto à demora judicial. Existem as questões relacionadas à legislação processual civil (vou tratar somente desta; as questões penais ficam a cargo de quem seja especialista no assunto), mas há muitas outras, relativos à estrutura do Poder Judiciário, aos recursos materiais e humanos disponíveis, à forma como esses recursos são utilizados, à distribuição das causas, à quantidade de juizes e juizados em relação a esse número de causas, à sistemática de administração da Justiça, dentre várias outras. Ou seja: quem pretender, como tantas vezes já se fez, achar que vai acabar com o problema apenas alterando as leis processuais, vai estar cometendo um erro grave logo de início.

Apesar disso, parte do problema está, sim, relacionado às nossas leis processuais. Então, feita essa ressalva inicial, vou tratar, aqui, só desse aspecto (antes que o blog vire mesmo uma tese).

Existem três pontos essenciais na legislação processual civil brasileira que tornam nossa Justiça intoleravelmente lenta, por ordem de importância: o efeito suspensivo da apelação, o efeito suspensivo dos embargos de devedor e o horror absoluto em relação ao princípio da oralidade. O segundo, felizmente, já não está mais entre nós, mas vou tratar dele porque foi uma aberração que levou singelos trinta anos para ser extirpado do nosso ordenamento.

O primeiro e mais grave dos problemas legislativos que geram lentidão da Justiça é o efeito suspensivo da apelação, previsto no artigo 520 do Código de Processo Civil. Para quem não sabe do que se trata, ele significa que, pela nossa lei, a decisão do juiz de primeira instância (o que “julga primeiro”) simplesmente não tem eficácia nenhuma. É como se ela “não existisse”, salvo raras exceções (como a da tutela antecipada, que dá uma decisão “urgente”). É preciso que haja um recurso dessa sentença de primeira instância, para que a matéria seja decidida pelo tribunal (“segunda instância”) e, então, essa segunda decisão é que pode ser executada (para quem quiser se aprofundar, tenho um artigo completo sobre o assunto publicado na Revista do IASP n. 14, p. 309).

Quem é leigo normalmente tem dificuldade em acreditar que a nossa lei realmente diga tal coisa, mas é a pura verdade. É como se tudo que o juiz de primeira instância fez e decidiu simplesmente não valesse nada – entre os advogados, há até a jocosa expressão de que “julgamento que vale é só o do Tribunal”. Essa questão está relacionada à efetividade das decisões, mas tem reflexo direto na celeridade: é preciso esperar não um, mas dois julgamentos.

Na grande maioria dos países, o efeito suspensivo da apelação ou é exceção, ou não existe nunca. No Brasil é regra. No resto do mundo quase todo, o que o juiz de primeira decide é executado de imediato, mas com sistemas de proteção para evitar que isso gere efeitos irreversíveis (o que, em Direito, se chama de “execução provisória”). Se, em segunda instância, a decisão de primeira for confirmada, a execução que era provisória se torna definitiva. Se, ao contrário, o tribunal reformar a decisão, tudo volta ao que estava antes, e o exeqüente tem de pagar por quaisquer prejuízos que sua execução provisória tenha causado.

A doutrina se bate contra o efeito suspensivo da apelação desde sempre, e inúmeras propostas de reforma processual pretenderam alterar esse erro evidente. No entanto, pelos mais variados motivos políticos, essas propostas nem sequer chegam ao Congresso Nacional para votação.

Justiça que funcione, pelo jeito, é algo que contraria interesses incrivelmente poderosos.Há um outro aspecto pernicioso do efeito suspensivo da apelação. Graças ao fato de a Justiça ser tão lenta, ele permite que se apele pelo único motivo de fazer a causa se prolongar. O raciocínio é muito simples: para que pagar agora, se é possível prolongar o pagamento por 4, 6, ou até oito anos? Se se tratar de Justiça Federal, o tempo de espera para julgamento de uma apelação chega a ser o dobro disso, às vezes até mais. Quem perde, então, apela ao tribunal não porque ache que a sentença esteja errada, mas justamente porque sabe que ela está certa – e sabe também que essa simples apelação vai lhe dar um tempo enorme. Isso também lhe permite tanto propor acordos em condições lamentáveis para o vencedor, quanto simplesmente sumir com todo seu patrimônio. Seis anos é um tempo bem longo quando se trata de planejar e executar maracutaias.

Apenas para comparar: despejo (veja a íntegra da Lei de Locações aqui: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8245.htm) é um dos raros casos em que a apelação não tem efeito suspensivo no Brasil. As estatísticas do Tribunal de Justiça de São Paulo mostram que, nos meses seguintes à aprovação dessa lei, o número de apelações caiu mais de 60% . O motivo é bastante óbvio: a partir da nova lei, só apelava quem realmente achava que tinha sido injustiçado. A apelação “para ganhar tempo” deixou de existir – e o reflexo imediato foi um número muito menor de apelações. E menos apelações significam um tribunal mais rápido para julgar as que sobram…

Semana que vem tratarei dos dois outros pontos da nossa legislação.

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